Ela apertou o passo. Desesperada, a rua convergida de gente. Para trás a poeira fina e orgânica baixando pela calçada cheia de lixo. O vestido balançando sob a fluidez do vento morno de fim de verão. Cidade gris. As pernas resistindo à pressão do corpo pesado pelo cansaço. Adiante, um calçadão como alça de acesso ao viaduto repleto. Os degraus parecendo gomos piramidais, intransponíveis.
Vencera, exausta. O alambrado em balaustre, como sacada, dando vista para um horizonte hipnotizante. Parou. Recostou sobre a coluna. Pasmada, ficou a observar a montanha de prédios a nortear o panorama dos seus olhos. Por um instante, a supremacia do tempo deixou de ser importante. E tantas coisas desimportantes vindo à tona pelo revés da memória há pouco suprimida pela pressa. Melancolia...
Com as mãos trêmulas remexe a bolsa que guarda com tanto esmero embaixo dos braços. Retira um pequeno porta retrato, azul, onde contém duas fotografias. Uma delas revela o semblante sorridente de uma moça na aurora da vida. A outra trás o rosto de um moço sereno e também iluminado pela áurea da juventude. Aperta a mão contra o peito sobre um pingente em forma de coração pendurado em seu pescoço. Compartimentado como um bálsamo, guarda a pequena imagem da filha, agora crescida.
Isabelle crescera como crescem os crisântemos, linda e alegre. Mas sem a presença do pai, que deixou a ambas quando caiu de um andaime, quando construía os mesmos prédios que despontam ao longe. Edifício: pedra e nuvem. Helena chora.
Quem mora o conforto de um apartamento não sabe o peso da sofreguidão com que foi erguido. Assim como as chaminés que guardam a dor de uma árvore morta ao ser queimada. Nem a desesperada tentativa de respirar, fora d`água, de um peixe que acabara de fisgar a isca.
Assim são as perdas que soam ao coração como as mais avassaladoras tentativas de assassinato dos seres. Resolve seguir adiante.
Para trás ficam as lembranças. A rua repleta e solitária. Senhoras que choram com placas de desaparecidos. Mendigos deitados ao relento de um banco ornamentado por um chafariz que jorra e chora a miséria dos dias. Ficam os ladrilhos que guardam o corpo dos cães famintos a espreitar as migalhas dos benfeitores e os pombos arrulhando a podridão urbana da modernidade. Helena não para nem sorri. Apenas carrega consigo a reminiscência das horas. E o cheiro das alfazemas e o ocre da tarde.
Chega à casa, despe-se. A água caindo sobre seu corpo lavando a canseira e os restos da rua que ficara. Impregnada na pele, a peripécia do palhaço, que tentava exaustivamente arrancar o riso das crianças. E a lágrima dos desamparados.
Limpa e crua corre para a varanda onde acolhe num abraço, a filha Isabelle que ainda revela as pernas em tropeço quando esboçava os pequenos passos que a levariam para a imensidão de amor de ser filha e mulher.
Ambas se confortam e se completam e as quimeras da vida se dissipam pelo entardecer...