Quando eu era menino olhava para o chão e imaginava um
imenso buraco. Espremia os olhos e me via na miopia do amanhã usando óculos em
pequenas armações de arame. Essa era a minha resposta para o futuro. O que eu
queria ser quando crescer. Queria ser, acima de tudo, fazedor de coisas. Dessas
coisas todas, a maior era poder resolver os problemas, espantar os medos com a
coragem que aprendi aos poucos pelas ruas de paralelepípedo da minha cidade.
Ali, com poucas ruas e tomada de morros cobertos de relva por todos os lados e
banhada por um rio, eu tinha certeza que era o centro do mundo. Meu mundo foi
sempre assim: uma vastidão imensa partindo apenas de um pequeno ponto de vista,
que era o que eu enxergava para além do meu quintal sem cercado. E era um mundo
imenso. Meu pai carpinteiro me trouxe meu segundo presente mais precioso: um
caminhãozinho de madeira que ele mesmo fizera quando trabalhava fazendo as
armações de ripa para colocar o telhado da escola aonde, depois, eu viria a
descobrir as primeiras letras. E, como a ocasião é quem faz, nesse caso, o
fazedor de coisas, eu passei a construir meus próprios brinquedos.
Caminhõezinhos de carroceria de madeira e a cabine feita de lata de óleo. Os pneus
de borracha de chinelas havaianas velhas que catava em terrenos baldios. Por
volta das seis horas da tarde, eu via toda aquela meninada vindo da escola com
seus cadernos de brochura por debaixo do braço, ora ensacolados com embalagem
de arroz, ora com embornal feito de pano. Eu já tinha sete anos de idade.
Perguntava para minha mãe porque eu também não estava na escola como as outras
crianças. Ela respondia que eu era muito pequenino. E era mesmo. Mas insisti
muito e ela me matriculou e assim me ingressei com oito anos de idade na
primeira série. Na hora do recreio a meninada sempre fazendo suas estripulias.
Eu era aquém àquilo tudo. Não gostava. Encantava-me mesmo era a biblioteca da
escola e seu imenso acervo, que depois ficou pequeno para mim. Li quase todos
os livros. Quando chegava
à minha casa, primeiro fazia a lição. Depois sim, brincava com meus amiguinhos
da rua. Minha avó preta, dona Quelé , sempre contava histórias de lobisomem,
saci e mula sem cabeça. Eu ficava com um medo danado, mas não me furtava a
escutá-las. Era mais forte do que eu o encantamento que me causavam. Depois,
lendo mais ainda, descobri que eram lendas criadas pelo imaginário popular de
gente muito antiga. À beira do terreiro é que as horas passavam depois do
jantar, olhando as estrelas e ouvindo o coaxar dos sapos que se hospedavam no
fundo do quintal de casa, que era meio brejado. O fogão de casa era de lenha
que a gente mesmo buscava nas matas aos arredores da cidade. As trilhas cheias de
carrapicho eram os labirintos que me ensinavam sempre a descobrir que havia uma
saída. Na miséria minha de cada dia, descobri todas as riquezas que hoje
cultivo no âmago da minha alma. Eu era feliz. Era como um passarinho que podia
explorar o mundo sem nenhum medo. As ruas não tinham muros, a porta de casa
estava sempre aberta. O fogão era de barro, e na sala tinha a mesa com cadeiras
de madeiras que meu pai mesmo fazia e, que hoje, valem uma fortuna: móveis
rústicos. E tudo que antes era
considerado pobre, hoje é ornamento caro nos maiores stands de decoração. Acho
que é por isso que conservo minha alma com a mesma essência daquelas coisas
todas. Minha mãe tinha uma horta. Eu também tinha uma. As pessoas da época
davam o maior valor para os enlatados e coisa e tal. E hoje tem muita gente
ganhando dinheiro com produto orgânico. Merda de vaca dava um nojo, mas hoje é
esterco de primeira qualidade para o cultivo de hortaliças que enfeitam as
melhores bancadas de supermercado. Acho que é por isso que sou tão resistente às
unanimidades. Alheio a tudo que envolve opinião pública e que abarca o
pensamento de multidões como se o ser humano pudesse ser resumido apenas numa
única forma de pensar. Não gosto de ideais, gosto de ideias distintas. Lá no
meu infinito particular, no meu não tão distante tempo de outrora, ainda
menino, vejo o mundo como uma mão e um boneco de fantoche onde a primeira pode
ser resumida na vontade de construir a face de um povo com base no interesse de
seu manipulador e o segundo é esse povo que age conforme move a mão. Eu nunca
fui inocente. E hoje muito menos ainda. Agora, em meio à selva de pedra no
gigantismo da megalópole, eu inventor de pequenos arranjos que desenho na minha
imaginação para driblar os muros e os cercados da modernidade, continuo
imaginando o imenso buraco à minha frente e tentando descobrir qual será a
armação para os óculos quer irei usar para saltá-lo. Eu sou fazedor de coisas,
afinal obstáculos nunca me foram tão grandes diante da minha capacidade de
criar máquinas para demoli-los. Por isso estou aqui hoje, ileso, sem rupturas
no meu coração, sem cicatrizes na minha pele, apenas as mãos cheias de calos
por construir portas para eu entrar e sair à hora que eu bem quiser.
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