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domingo, 29 de maio de 2011

A promessa

A porta fechou-se sozinha, por suplício, por recomendação do vento que trazia o inverno para a sala, que infestada por um aroma de incenso, ornamentava a lembrança, talvez com remorso, talvez por solidão. Deu de ombros por saber que, mais dia menos dia, voltaria a abri-la com sua teimosia de calma. Antes, era tomado por grande comoção, mas já não cria mais na remissão da culpa que imaginava, nunca tivera.

Horácio percebia que precisava continuar. Em casa, entregue à comiseração dos seus atos, desatou a rir, incrédulo. Inquieto, passou a desfolhar o caderno onde guardava anotações importantes. Calçou um tênis preto, dobrou uma folha em branco e a guardou no bolso. Tomou o rumo da rua. A estação ferroviária o recebeu com entusiasmo. Abarrotada de gente, a fila de comprar o bilhete parecia interminável. No velho centro, desembarca espremido entre as gentes de todos os destinos. A banca de jornal trazia alguns noticiários que ficavam pendurados para vender ou propagar os acontecimentos. Uma prostituta com uma blusa em decote deixava os peitos à mostra, convidando para o trabalho de fim de tarde. Uma parede de banco era o ponto escolhido. O homem percebia tudo sem interesse. Já tivera sua alma vendida, não venderia seu corpo por prazer. A mulher talvez vendesse, pois ainda tinha alma. O sebo logo adiante...

Alguns livros de sociologia moderna, literatura africana e poesia brasileira. Enfiava a cabeça entre as prateleiras apertando os olhos através das lentes pelos títulos miúdos. “Na cinza das horas”, de Manuel Bandeira, divide com ele o momento que atravessa. Leva esse e mais outros de poesia. Resolve voltar de ônibus. Via Ana através da janela, as vidraças embaçadas dos prédios refletiam um sol vermelho. Acabara de lembrar que em abril tudo era maravilhoso. E depois, como sempre acontecia em suas histórias, inexplicavelmente, tudo ficava turvo. O olhar sempre fito num ponto invisível que fixava com obstinação. Pensava: “não quero mais saber disso”.

Entre um verso e outro, a vida ia passando. E já se passaram seis anos e outros viriam. Apenas Ana não passava e isso era um gole que saciava a sede ou degolava o coração, que não sabia viver de imprevistos. Queria, talvez, alguma certeza para continuar. Mas não sabia se era ilusão ou a luz do carma que lhe caía mais uma vez, indolente.

2 comentários:

Carla Diacov disse...

wow!

Quintal de Om disse...

promessas e pó se assemelham bastante em partíclas que suspendem no ar por entre o vão do tempo que se não tiver sido em vão, ainda haverá um porto seguro pra receber semente que, talvez, possa germinar um futuro (descom)prometido.

Muito bom, Márcio.
Be:)os.
Samara Bassi

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