Por Márcio Ahimsa
Tenho em mãos uma pequena peça constituída de muitas outras pequenas e grandiosas peças. Estendidas sob a perpendicular e aguçada curiosidade dos meus olhos, essas folhas caídas da beleza de algum outono, vieram pousar na minha alma e causar riso no meu coração. Assim foi a impressão primeira que tive dos versos que li dessa poeta de grandeza maior, Maria Vilani. Pensei: demais!
Mas demais mesmo. Tanto que devorei o livro em duas horas, a fio, ininterruptamente, com algumas leves pausas para anotações. Queria fazer uma resenha. Comecei a escolher poemas, mas eram tantos. Tantos quanto é tanta a ternura de Maria, como é tanta a gana de Vilani. Aí veio Milton Nascimento é disse de Maria: “mas é preciso ter força, é preciso ter raça”, “Maria Maria mistura a dor e a alegria”. E a resenha foi deixada de lado. Não sei mais o que quero escrever. Vou deixar as minhas percepções dizerem enquanto meus dedos digitam o que abaixo vier.
A poesia de Maria Vilani é um “Varal” teso onde pesca no horizonte da vida os versos que o dia comum pode oferecer, entre batalhas, entre amores vivenciados, entre o sentimento maior de ser mulher, de ser filha, de ser mãe e esposa.
A urgência pela vida é uma temática recorrente. Poemas como “Brevidade da vida” e “Trânsito da vida” trás um alerta: em meio a buzinas e a pressa, devemos tomar consciência de que a vida é perecível. É a necessidade de desmaterialização das coisas, pelo simples fato de serem coisas, para se presentificar no instante, como algo palpável. Em “Varal”, que é título do livro, o eu-lírico assim diz: “As roupas velhas, relíquias de um passado, que não volta mais, arranquei-as uma a uma, e as atirei no lixo do presente” como quem implora: deixemos tudo de lado, vivamos, simplesmente.
Dessa maneira, a vida sendo o viés que dará o tom na poética de Maria Vilani, a rebeldia da menina terna vem à tona em “Nações Unidas” que é uma ode ao homem que trabalha, que é embrutecido pela máquina e torna-se, num mimetismo quase perfeito, a própria máquina. Estamos todos unidos na privação da vida em prol do trabalho. Homem que enferruja a própria sorte, dia após dia, para viver. Assim, mata a alma pela morte do corpo.
Resiliente diante das circunstâncias, obra e poeta se confundem, como podemos ver em “Carta para o além”, que é um poema biográfico e fala da imagem e importância da construção familiar para se construir um caráter, se construir uma pessoa. Não quero falar da perda, pois essa recorrência aqui é inútil, uma vez que a menina sempre confiou seu destino pelos ensinamentos sempre presentes que tivera do pai. A emoção que a leitura do poema passa é uma catarse. Não cabe explicação, apenas sentir.
Desse modo, diante da transitoriedade da vida obsoleta – a poesia cria raízes no asfalto e traça a caminhada imperceptível do ser diante da voracidade da cidade urbana. Nesse palco, tendo como cortina a janela da vida, eis que o cotidiano devora a carne do homem e da mulher pela fome de construir consumo. No fim, acaba por construir a peleja, que constrói a morte do corpo, que mutila o coração de sentimento e decepa a alma de amor.
Se a poesia de Maria Vilani é forte, ao mesmo tempo é delicada como o delgado sopro do vento numa tarde de primavera. Em “Agenda”, a construção poética é de um lirismo autônomo, em que falam os versos: “sou tão tua, quanto minha, nunca fui suficientemente minha, porque nunca fui totalmente tua”. Mas não nos deixemos enganar pela delicadeza. Esse poema é de um embate único com a própria razão de ser ou não ser poeta. O eu poético se digladiando com o eu comum. Nessa luta, talvez, a poeta se revela pela face de uma mulher, ávida pela busca de um amor. Revela-se na incondicionalidade das coisas, na saudade selvagem da infância, no elo sedimentado no corpo e na alma aprendida com o que é simples e essencial.
É nessa busca incansável para alcançar o semideus na semiótica de ser poeta e ao mesmo tempo ser perecível ao tempo, que vejo uma mulher que pedala numa rua vazia e busca no espectro das coisas o significado de viver, de amar, de morrer, mas sem se relegar à condição de deusa, que cria o amor, que infringe a dor, que se renasce como fênix no inexorável sentido de viver.
Em sua poesia, o tempo é o inquisidor da vida. Podemos sentir o palpitar a cada segundo e a ideia de finitude. Mas num “Sonho vaporoso” a indagação pelo prelúdio do dia busca um instante pela vanguarda de ser humana, transitar e impelir em si mesma a chaga contínua de ser poeta, viajar pelo espaço sideral e encontrar o nada e no nada se fazer carne e aço.
Então “Ser poeta é voar ao infinito com os pés sujos de barro”. Essa definição desmistifica o poeta e o torna lápide subjugando sua existência que se desmancha como folha de papel em branco na transparência quase assassina da água. Ser poeta é poder dar a chance de morrer e
nascer todos os dias com o sofrimento. “Negam-nos o direito sublime de sofrer”, no poema “Alienam-nos”, pois sofrer é beber um cálice amargo de morte e o tornar em vida. Tolher o sofrimento é ruminar uma existência fabricada por máquinas, que nada sofrem, apenas se corroem na tentativa cruel de ser aço.
Então somos humanos, e existe o amor, e existimos pelo sexo como em “cogumelo gigante”. E somos finitos, mas somos jovens. “Se você é jovem, não se esqueça que a juventude é transitória, não construa castelos na areia, construa um mundo onde você possa habitar, se você é jovem, cuide para nunca envelhecer”.
Assim, nesse conflito constante entre a brevidade do tempo e a constância da vida, entre a delicadeza da pétala e a acidez do espinho, entre a dor da saudade e a comiseração de viver para alcançar o amanhã, entre a inocência da menina de oito anos e a juventude na sabedoria da mulher de sessenta, que encontramos encanto pelas bordas e ternura comprimida e pendurada na graça de um livro distribuindo poesia pelos olhos de quem lê nesse pequeno relicário, chamado “Varal” de Maria Vilani.
2 comentários:
Realmente, tua descrição me fez aguçar os sentidos, a curiosidade e a vontade em conhecê-la.
Essa imagem de "varais" de certa forma, me agrada. É como ter os instantes pendurados diante dos olhos ou não, mas de qualquer maneira, se mostrando numa magnitude de sentimentos, de acontecimentos que, por mais que sejam simples, não devem passar despercebidos.
Gostei.
Um beijo,
Sam.
Marcio, acabei de chegar de um lançamento em Olinda - PE do livro de Maria Vilani num debate coma secretaria de Mulher - Sra. cristina Buarque !
Existe algumas luzes nas palavras de Vilani , a vida trasnpira nos seus poros e você percebeu isto no seu comentário poetico ! Vou reproduzir posso?
Veronica
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