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segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Coisas de ontem, crônica de hoje (O fazedor de coisas – Márcio Ahimsa)

Quando eu era menino olhava para o chão e imaginava um imenso buraco. Espremia os olhos e me via na miopia do amanhã usando óculos em pequenas armações de arame. Essa era a minha resposta para o futuro. O que eu queria ser quando crescer. Queria ser, acima de tudo, fazedor de coisas. Dessas coisas todas, a maior era poder resolver os problemas, espantar os medos com a coragem que aprendi aos poucos pelas ruas de paralelepípedo da minha cidade. Ali, com poucas ruas e tomada de morros cobertos de relva por todos os lados e banhada por um rio, eu tinha certeza que era o centro do mundo. Meu mundo foi sempre assim: uma vastidão imensa partindo apenas de um pequeno ponto de vista, que era o que eu enxergava para além do meu quintal sem cercado. E era um mundo imenso. Meu pai carpinteiro me trouxe meu segundo presente mais precioso: um caminhãozinho de madeira que ele mesmo fizera quando trabalhava fazendo as armações de ripa para colocar o telhado da escola aonde, depois, eu viria a descobrir as primeiras letras. E, como a ocasião é quem faz, nesse caso, o fazedor de coisas, eu passei a construir meus próprios brinquedos. Caminhõezinhos de carroceria de madeira e a cabine feita de lata de óleo. Os pneus de borracha de chinelas havaianas velhas que catava em terrenos baldios. Por volta das seis horas da tarde, eu via toda aquela meninada vindo da escola com seus cadernos de brochura por debaixo do braço, ora ensacolados com embalagem de arroz, ora com embornal feito de pano. Eu já tinha sete anos de idade. Perguntava para minha mãe porque eu também não estava na escola como as outras crianças. Ela respondia que eu era muito pequenino. E era mesmo. Mas insisti muito e ela me matriculou e assim me ingressei com oito anos de idade na primeira série. Na hora do recreio a meninada sempre fazendo suas estripulias. Eu era aquém àquilo tudo. Não gostava. Encantava-me mesmo era a biblioteca da escola e seu imenso acervo, que depois ficou pequeno para mim. Li quase todos os livros. Quando chegava 
à minha casa, primeiro fazia a lição. Depois sim, brincava com meus amiguinhos da rua. Minha avó preta, dona Quelé , sempre contava histórias de lobisomem, saci e mula sem cabeça. Eu ficava com um medo danado, mas não me furtava a escutá-las. Era mais forte do que eu o encantamento que me causavam. Depois, lendo mais ainda, descobri que eram lendas criadas pelo imaginário popular de gente muito antiga. À beira do terreiro é que as horas passavam depois do jantar, olhando as estrelas e ouvindo o coaxar dos sapos que se hospedavam no fundo do quintal de casa, que era meio brejado. O fogão de casa era de lenha que a gente mesmo buscava nas matas aos arredores da cidade. As trilhas cheias de carrapicho eram os labirintos que me ensinavam sempre a descobrir que havia uma saída. Na miséria minha de cada dia, descobri todas as riquezas que hoje cultivo no âmago da minha alma. Eu era feliz. Era como um passarinho que podia explorar o mundo sem nenhum medo. As ruas não tinham muros, a porta de casa estava sempre aberta. O fogão era de barro, e na sala tinha a mesa com cadeiras de madeiras que meu pai mesmo fazia e, que hoje, valem uma fortuna: móveis rústicos.  E tudo que antes era considerado pobre, hoje é ornamento caro nos maiores stands de decoração. Acho que é por isso que conservo minha alma com a mesma essência daquelas coisas todas. Minha mãe tinha uma horta. Eu também tinha uma. As pessoas da época davam o maior valor para os enlatados e coisa e tal. E hoje tem muita gente ganhando dinheiro com produto orgânico. Merda de vaca dava um nojo, mas hoje é esterco de primeira qualidade para o cultivo de hortaliças que enfeitam as melhores bancadas de supermercado. Acho que é por isso que sou tão resistente às unanimidades. Alheio a tudo que envolve opinião pública e que abarca o pensamento de multidões como se o ser humano pudesse ser resumido apenas numa única forma de pensar. Não gosto de ideais, gosto de ideias distintas. Lá no meu infinito particular, no meu não tão distante tempo de outrora, ainda menino, vejo o mundo como uma mão e um boneco de fantoche onde a primeira pode ser resumida na vontade de construir a face de um povo com base no interesse de seu manipulador e o segundo é esse povo que age conforme move a mão. Eu nunca fui inocente. E hoje muito menos ainda. Agora, em meio à selva de pedra no gigantismo da megalópole, eu inventor de pequenos arranjos que desenho na minha imaginação para driblar os muros e os cercados da modernidade, continuo imaginando o imenso buraco à minha frente e tentando descobrir qual será a armação para os óculos quer irei usar para saltá-lo. Eu sou fazedor de coisas, afinal obstáculos nunca me foram tão grandes diante da minha capacidade de criar máquinas para demoli-los. Por isso estou aqui hoje, ileso, sem rupturas no meu coração, sem cicatrizes na minha pele, apenas as mãos cheias de calos por construir portas para eu entrar e sair à hora que eu bem quiser.


domingo, 4 de agosto de 2013

Evidência

Na rua a espraiada de um tempo de cão...
Ao longe o mugido de um agora esquecido
ressoando a tristeza de dia sem pão.
São trincheiras e frestas de um livro lido.

A poeira já calcou nos pés dos seus marujos
a hora sem rumo que de dia desola,
as mãos de barro com seus dedos sujos
dissuadindo a fome de miséria e esmola.

Ferrugens, rodas de moinho, carro de boi...
Condolências para além desse asfalto,
a estrada rachada de pedregulho que se foi
colhendo saudade nessa cerca que salto.

Os sonhos que se escapam das mãos
Como bodoque atirando pedras na distância
Retrocede o prelúdio dos ventos sãos
que amarram a palavra engolindo sua ânsia.

A chuva fere esse chão de enredo,
fere como neve que chora a alma da inocência.
Carroça de carregar coragem e dissipar cedo

o medo de deixar para trás essa evidência.

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